Aquele era o segundo dia que ficaria em Burgos. Eu não caminharia, seguindo a recomendação médica, para me recuperar da tendinite no pé direito. Minha única atividade daquele dia era trocar de albergue.
A regra nos albergues é que só é permitido ficar apenas uma noite, para permitir que os peregrinos que cheguem na cidade no dia seguinte tenham local para ficar. O albergue não funciona como um hotel ou hostel. Em alguns casos, quando o peregrino está debilitado o hospitaleiro, o acolhe e permite que ele fique mais dias até se recuperar, mas isso não é uma regra. Depende exclusivamente do coração do hospitaleiro.
O albergue que eu e Helena, a garota alemã, estávamos era no andar de cima de uma pequena igreja. Ele era um tanto claustrofóbico e a hospitaleira um tanto quanto esquisita. Optamos por trocar para o albergue municipal, explicar a nossa condição e torcer que o hospitaleiro nos permiti-se ficar naquela noite. Ali era onde nossos amigos chegariam para ficar, naquele dia. A única dificuldade era esperar até as meio-dia carregando as mochilas. Eram sete da manhã e tomamos um café junto com os peregrinos que partiam para a sua caminhada.
Após enrolar muito naquele café, depois que todos partiram, resolvemos ir ao Museu da Evolução Humana, que não ficava muito longe dali. O museu só abriria depois das nove horas. Helena decidiu assistir a missa da Catedral que começaria às oito. Como eu não tinha o que fazer e não queria ficar andando, resolvi acompanha-la.
A missa ocorria na Capela de Santa Tecla a qual eu tinha visitado no dia anterior. O padre deu início em espanhol aos rituais litúrgicos. Percebi que nada mudou nos rituais desde da missa de sétimo dia de mamãe, a última que lembro que assisti. A liturgia continua inalterada desde dos tempos da Inquisição Espanhola.
A fala do padre não me toca, apesar de entender perfeitamente seu castelhano. O vazio preenchia os assentos. Os poucos fiéis ali, estavam espalhados nas fileiras do fundo. Reconheço alguns peregrinos nas outras fileiras. Helena está imersa na missa. Percebo que ela está tocada. No momento da comunhão, decido não participar.
A missa termina e as pessoas saem da Capela em direção a pequena porta lateral da Catedral que dá na rua. Todos passam purificados sem olhar para a mulher sentada no chão, do lado esquerdo, pedindo uma ajuda. Pegamos nossas mochilas e partimos para o museu.
No caminho pergunto a Helena se ela sabia espanhol. Ela diz que não. Pergunto se ela tem ideia do que se tratava o sermão, e ela não sabia do que se tratava, mas o ritual era o mesmo da missa alemã. Não faço mais perguntas durante a caminhada.
Penso na quantidade de vezes que encontrei Deus no caminho, e nenhuma delas necessitei da missa ou da hóstia. Em todas eu estava em comunhão com Ele. O ser humano vai perdendo a capacidade de encontrar Deus por si só e cria os ritos. Vejo os ritos como uma forma de tentar explicar o que não possui explicação.
Pense em alguém que chega e te pergunta, como você encontrou Deus? Você vai explica que não sabe como foi, só que estava fazendo isso ou aquilo e repentinamente aconteceu. Diz que repetiu a situação, mas não sentiu nada. A carga de frustração de quem procura uma maneira certa de encontra-lo é alta ao ouvir seu relato.
É nessa carga de frustração que se cria os ritos. É uma cartilha de como encontrar Deus e se você ainda não o encontrou é por que sua fé está pequena. Seguindo de geração em geração, até que as pessoas entendam que é só através dos rituais que o encontram. Por isso abandonei os rituais para encontrar com Ele com mais facilidade, mesmo não sabendo ao certo quando vou encontra-lo, mas tendo que o encontrarei.
foto: Catedral de Burgos enfeitada para o Festival das Flores (acervo pessoal)
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