E se todo dia fosse especial?

O terceiro dia do caminho começou ainda escuro. Segui de lanterna pela primeira hora. As bolhas na palma de meu pé, estavam cada vez maiores e doloridas. Mesmo sendo um dia frio eu suava bastante. A chegada a Pamplona — terra dos touros, foi marcada pela batida de meu cajado pelas ruas da cidade.

Descobri que o suor na minha camiseta era, na verdade, suco de laranja que entornou dentro da mochila. Para minha sorte, as roupas e os livros eram embalados em sacos a vácuo, o que minimizou o estrago. Porém, eu teria que limpar aquela bagunça, mesmo com as dores nos pés.

Tão logo, salvei uma muda de roupa, me pus na fila do banho. Um velho tentou furar a fila. Odeio pessoas que furam a fila. Não deixei ele fazer isso. Ele, esperto pediu desculpas e sorriu. O velho australiano se tornou um grande amigo que o Caminho me apresentou. Ele não seria o único que entraria na minha vida, naquela tarde fria na terra dos touros.

De banho tomado, a próxima era a fila da maquina de lavar. Devo ter ficado umas quatro horas nessa fila. Percebi que as pessoas não entendiam o funcionamento da maquina de lavar. Logo, eu estava organizando e orientando a todos como usar as máquinas. Ali conheci Nadine, uma loira alemã de sardas no rosto, que junto comigo, também estava ajudando os outros perdidos.

Entre uma lavagem e outra desmontei minha mochila para lavar. A turma da lavanderia se solidarizou quando contei a história do suco de laranja. Aqui vale explicar como sequei a mochila e os sacos. Usei o soprador de ar quente, que usamos para secar as mãos no banheiro.

Mochila, roupas e sacos limpos e secos, fui ao correio. Tomei a decisão de despachar meus livros e outros itens para Compostela e deixar minha mochila mais leve.

No correio conheci Helena, uma física nuclear alemã e Chin da Malásia. Elas não entendiam o formulário do correio, afinal estava em Basco. Pedi ajuda em espanhol para uma mulher, que me transcreveu o formulário. Assim, pude ajudar as peregrinas, traduzindo para o inglês. Logo eu, que só falava e escrevia em português 20 dias antes.

Voltei para o albergue, conversando com Chin. Organizei minha mochila novamente, antes de jantar. O senhor italiano, que estava na cama abaixo da minha, observou que eu estava sempre sorrindo. A observação dele me fez enxergar que aquele dia comum era para ser um dia duro e negativo. Afinal, eu estava com dores, com bolhas, com um suco entornado na minha mochila, peguei fila para o banho, para lavar e secar a roupa, além da confusão no correio.

Apesar de todos os contra-tempos, aquele foi um dia positivo. Todas as pessoas que conheci nesse dia, se tornaram grandes amigos, mesmo depois de o caminho ter terminado. Foi nesse dia comum que aconteceram tantas coisas e que conheci tantas pessoas, que ele se tornou especial e essencial para minha caminhada.

 

Foto: El Encierro de Pamplona

Vlad

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