Era terça-feira, dia de finados.

Mamãe queria ir ao cemitério. Fazia 6 meses que ela não saia de casa, devido a uma depressão profunda. Naquele dia a sua vontade, visitamos os mortos, os vivos e o médico. Eu tinha esperança. O fim de ano estava próximo e uma chance de recuperação se apresentou depois de tanto tempo. Até o clima havia melhorado e estava ensolarado naquele finados.

Depois de um dia cheio, hora de dormir. Estava cansado e cai no sono fácil. Me lembro de acordar uma vez na madrugada e escutar um latido. Não escutei mais nada e voltei a dormir.

Às seis da manhã acordei, escutando meu pai se movendo lentamente na cama do quarto ao lado. Sempre espero ele se levantar, descer a cozinha, colocar para esquentar a água do café, subir as escadas e ir ao meu quarto me acordar. É nosso ritual matutino.

Percebo que ele está demorando, mais do que de costume. Escuto passos céleres na cozinha. Alguém sobe correndo as escadas e grita meu nome. Me levanto quando meu pai alcança a porta do quarto. Está sem folego. Em meio a respiração ofegante ele diz que mamãe estava morta.

Desço as escadas em câmera lenta. Vejo o carpete do degrau com uma macha negra. Entro na cozinha e a cadeira dela está vazia. No cinzeiro, sobre a mesa, um cigarro não terminado. Na tabua de passar da lavanderia a Bíblia, que era usada nas pregações do avô, está aberta em alguma página de Apocalipse. A porta de saída da lavanderia está aberta. Na varanda e só encontro as suas flores murchas. Mamãe já não cuidava de suas flores. Sigo a direita alcançando o patamar da escadaria que dá o acesso à rua debaixo.

Ela está lá, em um degrau no meio da escada. Sentada nua, em posição fetal, lá está ela, minha mãe. Estava tomado pelo terror. Sentia como se o Everest desabasse em câmera lenta sobre a minha cabeça. Eu só queria naquele momento, sentar em seu colo e sentir a sua mão acariciar os meus cabelos. Como, aquilo pensamento me trazia paz. O tempo parou por um momento. Não escutava as vozes, o desespero de meu pai ou choro de minha irmã.

Quando voltei ao mundo, havia dezenas de pessoas em minha casa. A Policia tomava os depoimentos. Os legistas analisando a cena. O Rabecão se preparava para recolher mamãe. Familiares inconsoláveis. Amigos e colegas de trabalho prestando as condolências. Os olhares curiosos dos que passavam pela rua. Minha fobia de multidões surgiu ali.

Enquanto meu pai seguia para o IML, eu tinha a missão de retirar todos aqueles olhos e corpos curiosos dali e colocar a casa em luto sepulcral.

Na rampa que dava acesso ao patamar da escadaria, havia um litro de álcool vazio e um isqueiro, abandonados.

Quinta-feira.

O estado de choque não diminuía. Nenhuma lágrima havia caído de meus olhos desde da escada e tampouco dormir foi possível. Durante o velório, recebíamos as condolências de todos. Em certo momento uma vizinha, que me chama de lado. É a única pessoa que me abraça. Ali desabo e choro incontrolavelmente por minutos em seus braços.

O caixão está lacrado. Quem acreditava em mim, partiu sem se despedir. Tento duvidar que ela está lá. Sou apenas um menino, mas penso que tenho que ser forte, afinal ainda havia minha família para cuidar.

Chega a hora da despedida. Carrego a alça da frente com meu pai. O caixão desce a cova e o coveiro sela a abertura. Está terminado. Quantas coisas terminaram ali, naquele caixão? O sonho de dias melhores, as pipocas compartilhadas nos filmes, as trocas de leituras, o gosto pelas artes. Tudo terminou ali junto com a ultima pá.

Retorno para casa cinza e vazia. O silêncio é esmagador. As semanas e meses seguintes reviro toda casa em busca de alguma carta de despedida, ou alguma pista do por quê. Só restou um fio de seu cabelo, caído na Bíblia daquele dia. Ainda não sei onde e não sei quando, mas eu sei que vamos nos encontrar novamente em um dia ensolarado e quem sabe nesse dia eu te pergunte o porquê.